sábado, 29 de maio de 2010

sobre o porvir

"'Entrevado, desliza, arrasta-se, e o ruído niquelado de seu corpo ao aproximar-se é a única música que se ouve nos desertos calcinados do presente. Do outro lado, no outro front, já se exibe a heterogeneidade daquilo que nossos inimigos sempre consideraram idêntico a si mesmos. O que se poderia imaginar unido, sólido, começa a fragmentar-se, a dissolver-se, erodido pela água da história. Essa derrota é tão inevitável para eles quanto para nós é inevitável suportar o lastro que sua presença, seu cinismo, sua perversão calculada deixaram em nossa memória. Ou porventura alguma vez deixou de fluir, vinda do passado, a proliferação incessante da morte?', disse o Senador. 'Eles, nossos inimigos, com que convicção irão resistir? Que convicção poderá ajudá-los a resistir? Não poderão resistir. Eles vacilam, presos à aridez do porvir. Quanto a nós, aprendemos a sobreviver, conhecemos a substância cristalina, incessante, quase líquida, de que é feita nossa capacidade de resistir'" (Respiração artificial, Ricardo Piglia, tradução de Heloisa Jahn).

domingo, 23 de maio de 2010

just in time

Rever um dos filmes que costumavam embalar suas ilusões românticas há alguns anos é como transformar a casa em um sepulcro: cheio de velhos fantasmas.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

pequenos cataclismos

Quando o tempo presente, esse tempo aberto, das dúvidas, revela-se tão ameaçado que só pode ser percebido como o instante em que as vidas se adensam para desvendar o que permanecia velado – mais uma vez a equivocada metáfora –, o que o eterno-imediato confronta é o ponto de virada, a força centrífuga que nos dispersará. É esse o segredo: o que há de mais denso e definitivo parece contraditoriamente vago ou irreal por ser aquilo que está sendo jogado em nossas vidas sem fazer ruído enquanto, descrentes da mudança, ocupamo-nos com as mesmas perturbadoras distrações.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

lá e cá

Adiando o início da preparação de um seminário, escuto ao longe a televisão e penso na solução para os meus problemas: preciso me tornar uma personalidade pública poderosa como Dilmão, que vai ao sbt dar entrevista de helicóptero. E para que não reste dúvidas, logo em seguida a mesma reportagem informa que  Serra está, pasmem!, em Juazeiro do Norte pedindo a benção ao padre Cícero.

É a cobertura das eleições mostrando que a solução para os meus problemas geográficos está no estilo de vida da política brasileira.

domingo, 16 de maio de 2010

cinco minutos

Depois de duas ou três sonecas, o despertador do celular aparentemente desiste de mim. Chega a ser imoral sua condescendência para com o meu sono - um sono que por sua vez é eterno, como o desejo dominical de tomar frozen café.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

destempos

O sujeito acorda pensando que ainda hoje vai comer a comida da mãe, descansar, ver a família, fugir uns dias da loucura e então as coisas dão muito, mas muito errado. Aí bate a dúvida, se essa confusão é de fato aberrante ou se é tudo muito comum e você só está superestimando porque, afinal, foi com você que aconteceu e só a partir desse ponto de vista é que a bagunça se torna visível em todos os seus detalhes, sem controle.