sábado, 2 de outubro de 2010

a política eleitoral e a hostilidade

Num contexto em que qualquer assunto parece ter sua suposta importância para o mundo assegurada, o processo eleitoral é a única coisa que não pode ser enunciada em alguns espaços sem que a pessoa seja imediatamente colocada sob o signo da chatice infinita. A política partidária foi convertida no assunto mais uncool do mundo, alvo de uma hostilidade implacável. Do futebol à enologia, das gordurinhas que (acho que) preciso perder até a forma como caga o meu cachorro, tudo mais é dito publicamente sem que sua relevância seja questionada.

Acontece que há algo no processo eleitoral que o torna digno de um interesse que não me parece, de modo algum, injustificável ou absurdo. E nem recorro, para isso, ao argumento sobre as conseqüências reais e diretas que o resultado de seus trâmites ocasiona a todos – desde os aspectos mais públicos e de larga escala até a nossa intimidade. De fato, o discurso da “importância das eleições para os rumos do país” é um argumento tão desgastado que poucos ainda se atrevem a enunciá-lo, sob pena de se tornarem alvos do escárnio público. O que argumento é mais simples e, talvez por isso, mais fácil de ser levado em consideração. Existe em qualquer interesse algo de injustificável ou de contingencial: gosto porque sim; porque em determinado momento aquilo me pareceu curioso ou interessante ou importante. Essa instância inexplicável se desdobra também no tempo: não me envolvi nas disputas eleitorais de quatro anos atrás, mas me envolvo agora, porque sim – possivelmente porque naquela época houve uma série de fatores objetivos e subjetivos na minha vida que favoreceram um desinteresse por todo o processo. Tais fatores, agora, não seguem atuantes, ou foram suplantados por outros, mais urgentes, e que encontram nas eleições uma forma de apresentação dos seus impasses.

Recorrendo a um argumento menos arbitrário, poderia dizer também que as eleições permitem (re)pensar uma série de tópicos a partir de um outro viés; nelas estão condensados embates e discursos que nos permitem flagrar com mais agudeza alguns problemas contemporâneos. Assim, a candidata que pariu o PAC – e o verbo, embora de mau gosto, reflete bem o tipo de metáfora privilegiada na campanha –, se recorre ao encadeamento de termos como mulher-mãe-natureza-amor-instinto para construir sua imagem pública, isso me diz muito das ficções de gênero e como estas são agenciadas pela cultura do espetáculo. Sobre o poder simbólico a que se conectam os discursos de vitimização e sobre a forma melodramática da mídia é que me fala o esboço canhestro de uma narrativa de pobreza e de superação a que chegou a recorrer o candidato tucano. E se esse mesmo candidato recorre de forma quase desesperada ao lastro religioso de fotos e depoimentos para melhorar sua imagem, isso me fala sobre a persistência da religião e de sua esfera de influência. Também sobre a religião – e não apenas sobre os jogos políticos – tem muito a me dizer a situação da candidata de trajetória esquerdista que se mostra evasiva, por motivos religiosos, frente a tópicos caros à esquerda, como são a descriminalização do aborto e a união civil homossexual. A partir dessa candidata, eu posso ainda interceptar de forma privilegiada as conexões entre a lógica empresarial e a política, tendo como exemplo escolar a contaminação do discurso sobre o meio-ambiente pela retórica da responsabilidade social (a mesma com que as empresas limpam sua imagem e diversificam suas estratégias de marketing). Por fim, é sobre certa inclinação moralista de alguns discursos revolucionários que me fala o candidato socialista que condena a erotização geral promovida pelo mercado.

Poderia continuar enumerando tópicos, mas acredito que estes já são suficientes para assinalar o quanto o escopo das questões em jogo convertem o cenário das eleições em algo bem maior que o mero ofício de militantes fanáticos. As eleições, em suma, são o momento no qual a superexposição dos atores e a intensidade dos embates tornam visíveis pontos críticos da vida política e cultural. E se há toda uma retaguarda de marqueteiros, assessores e consultores que buscam efetivar a missão mais ingrata do pleito – possibilitar o máximo de visibilidade ao candidato com o mínimo de desgaste – , acredito que mesmo com os seus mais caprichados recursos (burilar a aparência física, evitar as perguntas polêmicas, alcançar a maior neutralidade possível ao mesmo tempo em que se busca transparecer o máximo de comprometimento formal e emocional desejado) ainda assim a força do processo impede a completa eficácia dessa blindagem moral e estética. Nas fraturas da estratégia mercadológica, resvala muito do ideológico que percorre as campanhas como um subtexto, como sua lógica reprimida. Uma declaração impensada, um ato falho, um gesto ou uma resposta menos ensaiada permitem vislumbrar muito do que está em jogo nos mecanismos de poder que aí se renovam.

Este componente de “revelação”, claro, não se limita aos candidatos: estende-se ao jornalismo, à militância, e não deixa de marcar seu rastro inclusive na acidez dos que ostentam uma súbita intolerância, uma hostilidade que não vacila diante do imperativo de converter em piada qualquer gesto ou palavra que pretenda considerar a existência mesma do processo como algo digno de comentário ou de alguma atenção. Hostilidade estranha, já que não é tão fácil justificar por que esse interesse seria menos compreensível ou menos tolerável do que qualquer outro. Na melhor das hipóteses, a agressividade diante da política partidária e institucional – que seria aquilo que, em última instância, se reconfigura em um processo eleitoral – é um gesto de autoimportância duvidosa: implica considerar, como disse, que qualquer detalhe trivial ou escabroso da minha vida íntima é mais “compartilhável” do que uma conjuntura que, por ser pública, poderia em princípio interessar a qualquer um. Não estou bem certo a respeito de qual dos casos demandaria maior cautela em sua pública enunciação.

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