sábado, 19 de dezembro de 2009

décadas passadas

Talvez pareça apenas uma observação estúpida, mas só há pouco eu me dei conta de que o que acaba com o próximo ano é uma década. E, pensando bem, o que pode não ser mais do que uma desculpa oportuna pra tanta crise e indefinição, por outro lado serve muito bem pra justificar uma recuperação ligeira de impressões passadas. Afinal, cabe a cada um decidir em que medida as convenções irão valer e, pra mim, pensar no que os anos oitenta ou noventa significaram como tais e considerar que o que agora se encerra traz algo da mesma carga significativa é algo no mínimo sugestivo. Pela primeira vez, talvez, tão sugestivo.

Quando os anos oitenta terminaram, eu ainda era novo demais para pensar em despedidas. Nem bem a nova década chegou, no entanto, e eu já havia sido arrebanhado pelas crenças cristãs, tornando-me vítima dos seus maus presságios. Criança que era, comecei a temer e esperar o fim dos tempos, impressionando-me com as visões de grandes calamidades que viriam assolar o mundo. Juazeiro cidade desolada, coberta de gafanhotos (justamente eles, os bichos mais asquerosos que alguma vez já invadiram o meu quintal). Nessa época era comum que eu desconsiderasse qualquer iniciativa dos meus pais como mera perda de tempo. Lembro do refrigerador novo que eles planejavam comprar enquanto eu, silencioso, desdenhava: pra quê, se o mundo vai acabar mesmo.

Por sorte, nem bem cheguei a meados dos anos noventa e tudo mudou: larguei o complexo de Nostradamus e o que era apocalipse virou anúncio de vida. Pré-adolescente, comecei a desejar o pandemônio. Carente de indícios, sofrendo de um constrangedor ineditismo (pois tudo, até a experiência mais trivial, era território a ser ainda conquistado), eu podia apenas suspeitar que, para além dos meus estreitos limites, existia uma vida menos estrangeira. Foi assim que sonhei com o fim dessa década que, por acaso, assinalaria também o limiar da minha partida. Enquanto isso, voluntarioso demais para ser um bobão nas primeiras filas, mas também despreparado e frágil demais para somar-me aos maloqueiros do fundão, internei-me em um meio – literal e metafórico – enquanto no espaço da casa ia preenchendo o tempo com a repetição compulsiva dos mesmos programas de televisão e de meia dúzia de discos.

Entretinha-me igualmente com a criação de situações fantasiosas, todas construídas como variações em torno de um mesmo núcleo que era melancolicamente desprovido de imaginação, dado o meu escasso repertório na época. Embalado por músicas datadas, comecei a desenvolver uma estranha fixação por imagens do passado e de outra década – não-vivida –, fixação que culminou com a minha peregrinação por inúmeras lojas em busca de um importador para certo obscuro VHS lançado no mercado norte-americano. Descobri ainda, em algum momento durante esses anos tediosos, que variando sutilmente a posição do conector dos fones de ouvido eu conseguiria ouvir com mais nitidez os diferentes instrumentos. Às vezes, se abusasse da própria boa vontade, vinha aquela sensação de música ouvida atrás do palco, nos bastidores.

Tendo canalizado o meu desajuste social recalcado para a admiração a ídolos fora de moda, levei-os comigo para a minha nova vida, iniciada juntamente com o novo milênio. Contrariando o antigo hábito de desejar o que não conhecia, decidi que queria viver em Recife para sempre, embora ainda não houvesse muito a que me apegar. Dois mil, dois mil e um, as coisas aconteciam devagar mas eu não reclamava, parecia questão de tempo até que tudo se precipitasse. Foi então que algo aconteceu, algo tão determinante que só pode ser ficção de quem, para contar, reconstitui a partir da superfície dos fatos – os mesmos que, se lembrados minuciosamente, seriam irredutíveis. O tempo acelerou, repartiu-se em múltiplas frentes que avançaram vertiginosas, confrontando-se mas permitindo a soma. E por uma determinação que havia calado durante muito tempo, eu logrei enfim fazer parte de algo sem nome que – prefiro acreditar – nunca mais acabou, mas passou a suceder-se em camadas que só se revelam por meio de um laborioso trabalho da sensibilidade.

Anos depois, uma amiga leria a minha mão e diria: sua linha da vida começa tarde. E eu, sem remorsos pela  sequidão do meu diagnóstico, avalizei o seu dom, confirmando: só comecei a viver aos dezessete. Mesmo isso, no entanto, já aconteceu há algum tempo, bem antes do que agora é um novo fim de década e que,  ao contrário dos outros, não posso resumir ainda porque é presente. E é nesse presente onde eu flagro mais uma vez as conversas na madrugada, a reconstituição obsessiva de detalhes, as conexões cúmplices que surgem – tão desejadas que, uma vez existentes, parecem  in-críveis. É aí onde está a indeterminação que, com o seu vazio, tudo promete. Para o que houve antes, basta apenas um flashback. É história que eu conto assim, em linha reta.

Um comentário:

Sabrina disse...

Eu acho que você não começou a viver aos 17, mas sim quando sentiu desprezo porque teus pais queria comprar um refrigerador com o mundo prestes a acabar. Isso é tão tu.